Comer Só

Comer Só
Edward Hopper, Nighthawks. Óleo em tela. 1942

O acto de comer a solo não deve ser visto como um percalço ou uma tristeza. Eu acho até que é um acto de libertação.

Este quadro do Hopper é, provavelmente, dos meus favoritos de sempre. Não tive ainda a sorte de o ver ao vivo, embora já tenha testemunhado o carácter solitário e introspectivo das suas obras. Diz-se que este Nighthawks é inspirado num restaurante que existia em Greenwich Village, Nova Iorque, onde duas ruas confluíam, mas ainda assim, está imbuído da aura da solidão das grandes cidades, mesmo que Hopper não quisesse retratar esse sentimento, pelo menos de propósito.

Penso neste quadro amiúde. E penso porque adoro andar pelas cidades de noite, sempre na busca desta imagem, do ser isolado, parado num balcão, a beber o primeiro copo do dia ou o último da noite, a picar uma sopa e uma sandes, talvez. Só no avançar da noite é que parece que estar sozinho à mesa ou na barra se torna legítimo e aceitável. Antes das horas avançadas, comer sozinho num restaurante parece um infortúnio, um azar.

10 aparentes motivos para se jantar a solo:

Levar uma tampa;
Estar solteiro, divorciado;
Não ter amigos;
Nem colegas, ainda por cima;
Sem jantar em casa;
Não tem quem o ature em casa;
Não querer aturar quem tem em casa;
Não querer dividir o prato
...

O acto de comer a solo não deve ser visto como um percalço ou uma tristeza. Eu acho até que é um acto de libertação. Liberta-nos da obrigação da conversa, de uma cerimónia meio que imposta pelo protocolo, de um que vais escolher? que, por vezes, é uma incógnita absoluta até à chegada de quem recolhe o nosso desejo. E não me interpretem mal, não é que não aprecie o protocolo.

Mas para o apreciar, tenho que desenjoar do mesmo.

Ficar mano a mano com um prato que nunca pediríamos, ter um tête-à-tête com a sala de refeição, deixar só o tempo passar numa récita cujos intervenientes são apenas e só os nossos pensamentos. E viver bem com isso. Caso isto seja incómodo, podemos-nos sempre por na pele de um preagustatore da Roma Antiga e desbravar o caminho para outros, ao garantir que não morrem envenenados ou pior: que apanham um barrete.

Já alguém foi ao sitio X comer prato Y?
Eu já. Estou vivo e recomendo-me. Calhando em bom, ainda re-como. O prato, diga-se.

Nem todos os sítios são incríveis para se comer sozinho. Creio que depende sempre do que se procura, óbvio, mas no meu caso, quanto mais agitado e frenético, melhor. Se puder ter uma sala grande, onde me possa sentar de forma a ser um panótico, ainda melhor. Observar as dinâmicas, que pratos se pedem, quem come o quê. Como servem os empregados, qual deles recomenda o prato mais vendido (recomendações são uma óptima forma de despachar stock, digo eu), se estão em fim de serviço ou de intermédio, se querem estar ali ou não. Quem são os comensais habituais, quem parou só para ver as modas, quem foi apanhado com o estômago colado às costas e precisava mesmo de comer qualquer coisa antes de desmaiar. É nesse frenesi que gosto de me encontrar, concentrado 100% no que e quem me rodeia, e corro o risco de ser julgado por quem lê estas linhas e achar que quem as escreve não gosta de estar em silêncio com os seus pensamentos.

Não estão 100% errados, mas.

Assumo que existam pessoas nos meus antípodas, em que o paraíso da refeição solitária é nada mais, nada menos, que o fim de serviço ou o restaurante mais cheio de cadeiras vazias possível. Tempo para parar, respirar, sair do Excel ou do telefone constante, do estudo inebriante (estudantes jantam sozinhos? Nem sei). Talvez essas pessoas jantem no mesmo sítio às mesmas horas, um templo e tempo de paz, reconfortados por um prato recorrente, as caras e os talheres de sempre.

É o costume?
Por favor
.

É só acrescentar mais uma peça à rotina, que a mim, não me fascina. Compreendo-a, mas mesmo a jantar comigo próprio, gosto de inovar.

No fundo, nunca jantamos sozinhos: jantamos com os nossos apetites, arrelias, frustrações e manias, rodeados de um véu muito leve de outros espíritos sozinhos, por vezes colados a ecrãs cujas diferenças de tamanho e ângulos de pescoço não fazem com que evitemos a verdadeira solidão. Numa era de hiper-individualismo, difícil seja talvez nos dedicarmos verdadeiramente a estar a sós, nem que seja numa refeição. Não vou evangelizar, nem ser coach. Vou só mesmo acabar por acreditar que nunca jantamos sozinhos.

Deixo-vos uma lista dos meus sítios preferidos para jantar sozinho, e duas histórias de conversas que tive e ouvi enquanto jantei sozinho. Mas só conto aos meus amigos (membros). Façam favor.