Marcará o Eurico uma geração?

A pergunta pode soar a descabida, desproporcional ou até mesmo desprovida de nexo ou decência. Pode até, de certo modo, ser considerada ofensiva, mais que não seja para outros restaurantes e seus chefs ou donos. Mas há que encarar a questão.

Marcará o Eurico uma geração?
A neo-tasca mais concorrida de Lisboa. Foto minha antes de um almoço em Janeiro de 2024.

Poderá este restaurante ficar registado, mais que no ADN de uma cidade, na identidade de uma geração?

A pergunta pode soar a descabida, desproporcional ou até mesmo desprovida de nexo ou decência. Pode até, de certo modo, ser considerada ofensiva, mais que não seja para outros restaurantes e seus chefs ou donos. Mas há que encarar a questão do humilde ponto de vista de quem a faz: trabalho com a realidade que conheço e que vou absorvendo, e desde há uns anos que há sempre um nome recorrente na boca de quem come por gosto nesta cidade: o Eurico.
O Velho caiu, de velho por ser tão novo talvez. Esperemos apenas que o Eurico original (Ferreira de apelido) ainda cá esteja para ver a romaria, quase constante, só interrompida pela pandemia e as obras, mais recentes. Ainda assim, desde 2019, não creio que nenhum outro sitio em Lisboa tenha movido tantas conversas, pelo menos numa faixa da população da cidade que tem a possibilidade de vir jantar a estes sítios. Não ignoremos que a cidade tem encarecido e comer fora é um luxo que não se pode totalmente ter como adquirido, e talvez seja por isso também que, mesmo quando estamos numa altura de aperto, a escolha recaia sobre algo que conhecemos e gostamos, mais familiar e refinado ao mesmo tempo.

Icónica sandes de chambão, em 2024.

Também não é justo dizer que o Eurico, na pessoa do Zé Paulo e do Fábio, coadjuvados pelos dois Joões (Caro e Menino) e ainda pela Margarida Pacheco e a Leonor Mendes, criaram do zero esta estética e forma de atuar e servir. A Taberna Sal Grosso, conforme o Pedro Abril também me revelou, foi o primeiro modelo que aliava descontração com óptima comida tradicional, feita sem pretensiosismos de querer ascender onde não se quer estar. Alimentados pelo carisma próprio de quem comandava o Sal Grosso e por lá gravitava, muitos dos que lá passaram ficaram marcados pelo estilo não só de entrega do produto, mas de serviço. E isso é notório no Eurico: a euforia, o caos controlado, um certo laissez faire bem doseado, que é meio caminho andado para voltar. Porque por mais que haja barulho, que esperes uma hora e meia à porta, sem sítio para te sentares, abrindo a conta cedo demais com três ou quatro cervejas, ou um Arinto das Indígenas do Morgado fresquissímo, tu sabes que quando te sentares à mesa, alguém te vai cumprimentar como se te conhecesse há anos, sugerir-te a sardinha no pão, guardar-te um leite creme, fazer pouco de ti em frente ao teu parceiro ou amigos. E não é isso que se procura na vida, na tasca? Falamos mal do queria, já não quer?; do empregado que traz a chávena de café vazia e o cabo da respectiva colher enfiado na argola da pega da dita chávena, pronto a fazer-nos saltar da cadeira só de imaginar a perspectiva de nos sujarmos e ficar a arder com um café nas calças; até bufamos quando o empregado (agora diz-se assistente de sala, parece que é mais assético) nos fica a contar uma história qualquer do seu dia ou da sua vida e nós só queremos sair dali (aconteceu-me há uns dias n'O Pomar de Alvalade, mas em minha defesa, eu tinha vindo da casa de banho e não apanhei metade da conversa); mas no fundo, é isso que nos reconforta, que é meio caminho para nos aquecer a alma. E isso, o Eurico sabe fazer.

As abaladiças. Já nem sei daqueles óculos de sol. Janeiro de 2024.

Fui pela primeira vez, num almoço de Janeiro de 2024, regado quanto baste, em que acabei a comer baba de camelo quase directo da fonte (desculpem!). O Pedro, o Fábio e o Daniel foram meus comensais parceiros e amigos, companheiros daquela larga hora em que corremos a carta toda, ou quase. Na memória, o chambão, o pastel de leitão, o vinhão e o bacalhau sem natas. Voltei em Setembro de 2025. Pareceu-me um bom desmame, 21 meses. Pedi pela carta toda, à exceção de uma coisa ou outra, que se não me lembro de escrever aqui, é porque não quis ou não havia (ya, o patê de fígados já tinha acabado). Entre 21 meses, a lula e a laranja, o pastel de leitão e as batatas com molho de francesinha eram os sobreviventes. Pedi como novidades uma sardinha no pão, bacalhau à Brás (ou com natas que não natas?), a morcela com nabo e grelos, o arroz de pato e a bendita lula. Como bónus, molho de camarão para molhar o pão e a papada, como compensação pelos fígados. Em modo picadinha, pudim de pão, leite creme e o flan. Para limpar gorduras, bagaço de laranja e sem laranja.

Acabo esta reflexão com uma declaração de interesses e uma putativa resposta à pergunta inicial: muito dificilmente me irão ler sobre a explosão de sabores ou a pungência disto ou daquilo. Não é que não as sinta ou que não as aprecie. Mas é que eu fumo e logo aí tenho um palato estranho. E depois, não sou super adepto de uma adjetivação lançada ao calhas, revestida de clichês do jornalismo gastronómico ou da forma como lemos determinados assuntos. Sou um romântico moderado, poderão eventualmente ler-me numa verve apaixonada sobre um gelado, um momento ou uma refeição. Mas não contem com isso amiúde. Finda a declaração, posso-me permitir então que me responda: marcará o Eurico uma geração?

Não sei.

Sei que tem mais longevidade do que alguns projectos gastronómicos, tem um grande padrão de entrega, tem gravitas e, acima de tudo e por enquanto, tem paixão. Se isso chega, é uma discussão que tem pano para mangas. Para marcar o agora, tem bastado. O Futuro só a eles pertence.