Marcará o Eurico uma geração?
A pergunta pode soar a descabida, desproporcional ou até mesmo desprovida de nexo ou decência. Pode até, de certo modo, ser considerada ofensiva, mais que não seja para outros restaurantes e seus chefs ou donos. Mas há que encarar a questão.
Poderá este restaurante ficar registado, mais que no ADN de uma cidade, na identidade de uma geração?
A pergunta pode soar a descabida, desproporcional ou até mesmo desprovida de nexo ou decência. Pode até, de certo modo, ser considerada ofensiva, mais que não seja para outros restaurantes e seus chefs ou donos. Mas há que encarar a questão do humilde ponto de vista de quem a faz: trabalho com a realidade que conheço e que vou absorvendo, e desde há uns anos que há sempre um nome recorrente na boca de quem come por gosto nesta cidade: o Eurico.
O Velho caiu, de velho por ser tão novo talvez. Esperemos apenas que o Eurico original (Ferreira de apelido) ainda cá esteja para ver a romaria, quase constante, só interrompida pela pandemia e as obras, mais recentes. Ainda assim, desde 2019, não creio que nenhum outro sitio em Lisboa tenha movido tantas conversas, pelo menos numa faixa da população da cidade que tem a possibilidade de vir jantar a estes sítios. Não ignoremos que a cidade tem encarecido e comer fora é um luxo que não se pode totalmente ter como adquirido, e talvez seja por isso também que, mesmo quando estamos numa altura de aperto, a escolha recaia sobre algo que conhecemos e gostamos, mais familiar e refinado ao mesmo tempo.

Também não é justo dizer que o Eurico, na pessoa do Zé Paulo e do Fábio, coadjuvados pelos dois Joões (Caro e Menino) e ainda pela Margarida Pacheco e a Leonor Mendes, criaram do zero esta estética e forma de atuar e servir. A Taberna Sal Grosso, conforme o Pedro Abril também me revelou, foi o primeiro modelo que aliava descontração com óptima comida tradicional, feita sem pretensiosismos de querer ascender onde não se quer estar. Alimentados pelo carisma próprio de quem comandava o Sal Grosso e por lá gravitava, muitos dos que lá passaram ficaram marcados pelo estilo não só de entrega do produto, mas de serviço. E isso é notório no Eurico: a euforia, o caos controlado, um certo laissez faire bem doseado, que é meio caminho andado para voltar. Porque por mais que haja barulho, que esperes uma hora e meia à porta, sem sítio para te sentares, abrindo a conta cedo demais com três ou quatro cervejas, ou um Arinto das Indígenas do Morgado fresquissímo, tu sabes que quando te sentares à mesa, alguém te vai cumprimentar como se te conhecesse há anos, sugerir-te a sardinha no pão, guardar-te um leite creme, fazer pouco de ti em frente ao teu parceiro ou amigos. E não é isso que se procura na vida, na tasca? Falamos mal do queria, já não quer?; do empregado que traz a chávena de café vazia e o cabo da respectiva colher enfiado na argola da pega da dita chávena, pronto a fazer-nos saltar da cadeira só de imaginar a perspectiva de nos sujarmos e ficar a arder com um café nas calças; até bufamos quando o empregado (agora diz-se assistente de sala, parece que é mais assético) nos fica a contar uma história qualquer do seu dia ou da sua vida e nós só queremos sair dali (aconteceu-me há uns dias n'O Pomar de Alvalade, mas em minha defesa, eu tinha vindo da casa de banho e não apanhei metade da conversa); mas no fundo, é isso que nos reconforta, que é meio caminho para nos aquecer a alma. E isso, o Eurico sabe fazer.

Fui pela primeira vez, num almoço de Janeiro de 2024, regado quanto baste, em que acabei a comer baba de camelo quase directo da fonte (desculpem!). O Pedro, o Fábio e o Daniel foram meus comensais parceiros e amigos, companheiros daquela larga hora em que corremos a carta toda, ou quase. Na memória, o chambão, o pastel de leitão, o vinhão e o bacalhau sem natas. Voltei em Setembro de 2025. Pareceu-me um bom desmame, 21 meses. Pedi pela carta toda, à exceção de uma coisa ou outra, que se não me lembro de escrever aqui, é porque não quis ou não havia (ya, o patê de fígados já tinha acabado). Entre 21 meses, a lula e a laranja, o pastel de leitão e as batatas com molho de francesinha eram os sobreviventes. Pedi como novidades uma sardinha no pão, bacalhau à Brás (ou com natas que não natas?), a morcela com nabo e grelos, o arroz de pato e a bendita lula. Como bónus, molho de camarão para molhar o pão e a papada, como compensação pelos fígados. Em modo picadinha, pudim de pão, leite creme e o flan. Para limpar gorduras, bagaço de laranja e sem laranja.









Sardinha no pão; Bacalhau; Pastel de Leitão Molho do camarão; Papada; Batatas com molho francesinha Lula e Laranja; Arroz de Pato; Morcela com Nabo e Grelos Setembro de 2025
Acabo esta reflexão com uma declaração de interesses e uma putativa resposta à pergunta inicial: muito dificilmente me irão ler sobre a explosão de sabores ou a pungência disto ou daquilo. Não é que não as sinta ou que não as aprecie. Mas é que eu fumo e logo aí tenho um palato estranho. E depois, não sou super adepto de uma adjetivação lançada ao calhas, revestida de clichês do jornalismo gastronómico ou da forma como lemos determinados assuntos. Sou um romântico moderado, poderão eventualmente ler-me numa verve apaixonada sobre um gelado, um momento ou uma refeição. Mas não contem com isso amiúde. Finda a declaração, posso-me permitir então que me responda: marcará o Eurico uma geração?
Não sei.
Sei que tem mais longevidade do que alguns projectos gastronómicos, tem um grande padrão de entrega, tem gravitas e, acima de tudo e por enquanto, tem paixão. Se isso chega, é uma discussão que tem pano para mangas. Para marcar o agora, tem bastado. O Futuro só a eles pertence.