Ser vivo

Ser vivo
Cozinha do Selo de Mar, em Setúbal. 2025

Conseguir harmonizar todas as vertentes de um restaurante pode ser considerado o verdadeiro desafio. Daí as experiências nunca serem coerentes. Somos todos diferentes seres vivos.

Comecei este texto um bom par de vezes, sempre à procura de uma analogia mais profunda ou significativa do que aquela que irei acabar por dar. Mas não faz sentido forçar uma ideia tão clara como esta:

Um restaurante é um organismo vivo.

Em nosso redor, inúmeros exemplos. Assumindo que um organismo é um sistema vivo com entidade própria, capaz de se reproduzir, desenvolver e manter, é fácil estabelecer o paralelismo. Mas foquemo-nos no elemento exemplo que nos acompanha para todo o lado e do qual não nos podemos dissociar: o corpo humano. Na multitude de sistemas que nos compõem, o que mais me pasma é a forma como tudo aparenta correr bem na grande maioria dos dias. Se formos afortunados o suficiente, passaremos grande parte do tempo sem dores ou desconforto de maior, e mesmo que surjam, temos uma pletora de opções e soluções ao nosso dispor para que fiquemos bem. Não é por isso que não temos ocasionais infortúnios mas, salvo raras excepções, podemo-nos considerar de boa saúde. Quando assim não é, sabemos que poderá ser temporário. Ou não.

A outra definição de organismo remete-nos para uma função de maior ordem prática: conjunto de partes ou elementos dispostos para funcionamento; sistema. E antes que isto pareça uma crónica do Jornal de Letras, explico rapidamente o porquê de esta definição também ser importante: um sistema, quando uma das partes não funciona tão bem, põe em causa a sua eficácia e, em última análise, a sua própria existência. A chain is only as strong as its weakest link, ou em português, uma corrente é tão forte quanto o seu elo mais fraco, e esta expressão basta para colocar em pratos limpos aquilo que tenho vindo a pensar sobre o ato de ir a um restaurante, e de como algumas pessoas não aceitam que existam, efectivamente, experiências diferentes, e como crucificam logo um negócio ou uma atividade por esta, de forma pontual, não ter ido de encontro às suas expectativas. Vejamos, por caso prático, como bom péssimo aluno de Direito que fui.

Pormenor do menu do Canalha. 2024

Canalha, na Junqueira, Lisboa. Projecto de João Rodrigues, cabecilha do Matéria, das iniciativas mais interessantes e importantes no panorama gastronómico português. Cozinha assegurada pela Lívia Orofino, formação na École Ducasse, passagens pelo Lasai e pelo Feitoria. Carta de vinhos robusta, espaço muito bem decorado, tudo para ser uma experiência por si só. Visitei em Junho de 2024, segundo serviço de jantar. Entrei na sala, alguns ilustres comensais, dignos de revista cor-de-rosa. Até aí, tudo normal. Sento-me na mesa indicada, com mais três pessoas, entusiasmadas com o que se seguiria. Sem querer entrar em detalhes: carta com produtos em falta sem aviso e serviço desastroso, justificado por falta de pessoal, experiência e sensibilidade, que foi devidamente perdoada pela oferta das sobremesas e pela excepcional salada de tomate, mas que não evitou o amargo de boca.

A comida encheu as medidas, mas não foi o suficiente para tirar a nódoa. Bitoque e salada de tomate. 2024

Fui vocal, de forma discreta, sobre a minha para-lá-de-má experiência. Falei a quem ia, interroguei quem foi. E foi unânime o veredicto: comida óptima, o que confirmo e serviço a acompanhar. Deixa vontade de voltar, mas fiquei de tal forma marcado que ainda assumo essa resistência.

Sala interior do Selo de Mar, 2025.

Selo de Mar, em Setúbal. Paralelo ao Can The Can, o Selo, nas mãos de Pedro Almeida, promove o relembrar das tradições piscatórias, aliado à sustentabilidade ambiental e a uma política de desperdício mínimo, no seguimento do Sem, do George McLeod e da Lara Espírito Santo (cuja intervenção, no Congresso de Cozinha, sobre o sistema alimentar partido em que vivemos foi, sem dúvida, uma das mais emocionantes e impactantes) e do Ciclo, do José Neves na cozinha e da Cláudia Abreu da Silva nos vinhos, que visitei na abertura e merece todo o êxito que está a ter. Não é por acaso: José e Pedro foram colegas de curso (diz-me o último, quando conversámos durante largos minutos enquanto finalizava os pratos antes de os enviar) e a preocupação está bem presente na nova geração de chefs.

Alguém me falou do Selo, que estavam interessados em ir, e eu aproveitei a oportunidade de estar em Setúbal, minha terra natal e ir. Para além de uma carta inovadora para o local em questão (Setúbal é peixe e choco, e faz isso bem, atenção), o serviço foi também inexcedível. Um pica-pau de atum e um lírio incríveis, bem como a mousse de chocolate. A quem me falou do Selo, dei o meu feedback, e ficaram ainda mais interessados.


Acontece que, para eles, a experiência foi completamente oposta à minha. Para além de comida, alegadamente, não ter estado ao nível do que descrevi, o serviço terá sido preguiçoso. Disseram, inclusive, que não voltariam.

E é aqui que bate o meu ponto. Se nós não devemos ser julgados pelos momentos em que nos encontramos mais debilitados ou quando cometemos um erro pontual, porque haveríamos de massacrar um restaurante, um sistema vivo, um organismo por uma falha? Porque riscamos do mapa sem dar a segunda abébia, o benefício da dúvida? É nessa intolerância que baseamos muitas vezes o nosso gosto e opinião, e, se somos considerados algum tipo de farol gastronómico, podemos correr o risco de mal iluminar outros, o que de si só já é mau princípio. A todos deve ser permitido um mau dia, um mau momento. Se o sommelier foi pai há pouco tempo e dormiu mal, se um chef de partie está mal disposto, se um assistente de sala está a aprender, é tudo legítimo. É certo que estamos a pagar por um serviço que se quer sem mácula, mas este organismo é feito de pessoas. Nunca poderá ser perfeito, só podemos assumir que, se tudo correr bem, a orquestra está tão bem afinada e o maestro conhece tão bem os seus músicos que faz uma gestão perfeita dos momentos, das pessoas e das suas funções. E quero acreditar que a repetição constante dessa afinação, aliada à qualidade e irreverência, trazem o caminho das estrelas.

Não quero acabar isto em jeito de apelo nem de recomendação, mas se calhar acabo, e que se foda: um restaurante não se esgota só no que comem, está em todos os processos. Claro que fica mais fácil fotografar, filmar ou falar só da comida, não obriga a um raciocínio crítico, muito menos a desenvolver um gosto ou qualquer tipo de padrão. Condiz um pouco com a acefalia crónica das redes sociais online. Por isso mesmo, não se limitem a dizer que as coisas são boas ou más apenas por um dia mau. Permitam-se pensar um pouco e voltar noutro dia, noutro serviço, com outra disposição. As hipóteses são que sejam surpreendidos.